Lições Organizacionais da Antártica

Autor(es): 

Maria Ester de Freitas

Ano: 

2012

Artigo em Foco: Lições Organizacionais Vindas da Antártica
 
Em 2009, a americana Elinor Ostrom foi indicada para o Prêmio Nobel de Economia. Seus estudos destacaram-se por mostrar em que contextos a propriedade coletiva pode funcionar – e melhor do que as propriedades individuais. Para Maria Ester de Freitas, professora da FGV-EAESP, a Antártica cabe perfeitamente no modelo de Elinor Ostrom. Em estudo publicado na Revista de Administração Pública, Freitas mostra quais são as características da gestão de uma estação de pesquisa na Antártica, em que militares e profissionais de diferentes universidades unem-se para preservar um bem maior.
 
A estação brasileira Antártica Comandante Ferraz (EACF), inaugurada em 1984, foi praticamente destruída por um incêndio ocorrido na madrugada de 25 de fevereiro de 2012. Dois militares morreram. O governo estima que a estação só estará completamente reconstruída em 2016. O estudo de Freitas foi realizado antes do desastre e revela como é importante que o tipo de organização ali estabelecido seja reconstituído e aprimorado – podendo, inclusive, inspirar outras organizações.
 
Ao contrário de utopias construídas para nunca serem alcançadas, a Antártica existe como obra coletiva e aberta. O continente não tem dono. O Tratado da Antártica prevê que apenas as nações que instalaram estações científicas ou bases ali podem decidir sobre o futuro do continente. “É um lugar onde o dinheiro não circula, onde as diferenças de status não são percebidas, onde a consciência da sobrevivência é imperativa e onde a voz da natureza é soberana”, afirma Freitas. Tampouco é uma terra de antepassados. Lá, a história está sendo feita. Não há, ainda, um centro reconhecido como uma referência comum, seja econômica, religiosa, política, cultural ou administrativa.
 
Nesse ambiente, os pesquisadores são regulados por uma filosofia de trabalho baseada na cooperação. Tal filosofia encontra sua essência no Tratado da Antártica, incentivando-os a decifrar o desconhecido, desenvolver e divulgar em conjunto estudos interdisciplinares e desenvolver fortes laços subjetivos entre membros do grupo.
 
Apesar de ficarem confinados em uma estação, sem privacidade, os profissionais entrevistados para o estudo não manifestaram qualquer incômodo a respeito. Observou-se que a interculturalidade é uma característica marcante, não só nas interações com colegas estrangeiros como também entre brasileiros que vêm de diferentes cidades e instituições.
 
Na estação brasileira da Antártica, dois grupos bem distintos convivem: os militares, para quem a hierarquia é fundamental; e os cientistas, que valorizam a autonomia. Essa diferença poderia causar atrito, mas isso não parece ser marcante. Há na estação uma rotina de organização, de gestão do tempo e do ambiente que fica sob a responsabilidade dos militares. A segurança é o único ponto inegociável. Por outro lado, os cientistas têm autonomia para tratar de assuntos relacionados à execução de seus projetos.
 
Os entrevistados disseram que as diferenças ajudam a desenvolver uma base comum de convivência. Inclusive, ao retornarem às suas cidades e universidades, os pesquisadores dizem que se sentem desorientados, têm problemas com a luz, com o trânsito e com o uso do dinheiro. Confessam ter saudades do silêncio e do infinito como paisagem.
 
Essa visão bucólica não significa que a gestão da estação seja simples. Trata-se de um sistema complexo, que começa pelas diretrizes delineadas no Tratado da Antártica, passa pelas estruturas dos governos nacionais dos países-membros, depois para o nível regional, com as instituições acadêmicas envolvidas, e, finalmente, ao nível local, com a execução dos projetos. 
 
Os processos de tomada de decisão em níveis distintos podem levar a diferentes direções, com ou sem a consulta e participação de todos os interessados. A força de coesão dá-se por uma comunidade de pesquisadores, que compartilham interesses, curiosidades, experiências, estudos, desafios e projetos. É um sistema aberto, que consiste de vários grupos que atuam em diversas esferas institucionais, ligadas a projetos de âmbitos e durações diferentes. Funciona porque, na Antártica, realiza-se um trabalho extraordinário e não padronizado. A principal fonte de poder dos membros desse sistema decorre do respeito e da reputação entre pares.
 
Cada membro depende dos outros, cada um é porta-voz e fiador de algo além de si mesmo. Todos enxergam a ciência como um trabalho coletivo. O comprometimento com o trabalho, a aceitação do outro como necessário, a ausência de símbolos de status e uso do dinheiro e a internalização da missão e dos valores fazem com que o risco de ruptura e colapso do grupo seja reduzido.
 
Mas essa é uma vida de passagem. Como fica apenas alguns meses na Antártica, o pesquisador, depois, volta para sua vida “normal”, cercada de conferências, simpósios, salas de aulas, alunos, livros e das normas e regras que estruturam e disciplinam seu trabalho acadêmico.
 
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