Anatomia de um Desastre Ecológico

Autor(es): 

Paulo Cesar Vaz Guimarães e Mario Aquino Alves

Ano: 

2011

Artigo em foco: On the Heuristic of the Analysis of Sensemaking: an Example for Accidents Involving Continuous Pollution
 
Em 1993, A Shell foi acusada de contaminar o solo no bairro paulistano da Vila Carioca, no Distrito do Ipiranga. A organização ambientalista Greenpeace e o Sindicato de Trabalhadores no Comércio de Minérios Derivados de Petróleo no Estado de São Paulo (Sinpetrol) encaminharam denúncias ao Ministério Público, que instaurou inquérito para investigar a situação. O caso ganhou repercussão internacional. Foi detectada presença de metais pesados, principalmente chumbo, e de derivados de petróleo como benzeno, tolueno e xileno, além de restos de pesticidas.
 
Após processos, multas e várias CPIs, não se chegou a uma solução para o caso. Segundo estimativa da Secretaria Municipal de Saúde, dos 28.072 habitantes da Vila Carioca, 6.538 estão expostos à contaminação provocada pela Shell, mas os exames toxicológicos necessários ainda não foram realizados. Os pacientes de Vila Carioca são acompanhados pelo sistema de saúde não como vítimas de contaminação, mas como doentes crônicos.
 
Por que a resposta para esse grave problema se arrasta por tanto tempo? Essa questão foi o motivador de pesquisa do professor Mário Aquino Alves, da área de Administração Pública e Governo da FGV-EAESP, e do pesquisador Paulo Cesar Vaz Guimarães. Segundo os autores, não seria difícil definir as responsabilidades. A definição da origem da contaminação estava clara, a poluidora era uma empresa que procurava aparecer como ambientalmente e socialmente responsável, e havia regulamentações básicas para servir de guia ao poder público.
 
Diante do conflito, em uma sociedade democrática, os atores envolvidos costumam se articular para continuar convivendo, por três mecanismos: reconciliação, retaliação e reparação. O caso da Vila Carioca revela uma quarta lógica: a vida seguindo o curso da “normalidade”, com pequenas transformações sendo implementadas, em nome da preservação do status quo.
 
A partir da análise de vasta documentação, Alves e Guimarães identificaram como as diferentes partes envolvidas elaboram uma estratégia comunicativa para lidar com o acidente. Cada parte procura criar um significado para si própria e para os outros atores. A Shell ampara-se na ambiguidade e na contradição como estratégia de sobrevivência. Procura transmitir cooperação com os demais personagens, mas, nos embates concretos, recorre à procrastinação. Tenta sempre corresponsabilizar os agentes públicos pela solução dos problemas, dando a entender que as iniciativas tomadas se inserem em uma “parceria” e não são decorrência de uma imposição legal. Quando as acusações externas chegam ao limite, a empresa defende que a população é culpada pela contaminação, por usar formicidas, e aciona a justiça para impedir os exames toxicológicos nos moradores. “Nesses momentos, todas as máscaras da empresa caem”, diz Alves.
 
A prefeitura, que poderia ter um papel primordial, mostra-se incapaz de coordenar seus membros e articular os agentes externos. Seu órgão ambiental tampouco consegue atuar eficazmente. Na área municipal, apenas o legislativo mostra-se atuante, ao instaurar CPIs. Autoritário, considera-se o real defensor da população, porém fica limitado aos recursos cênicos da “sociedade do espetáculo”, visto que não consegue ter êxito nem na manipulação dos seus próprios instrumentos de poder.
 
O legislativo estadual revela-se indeciso ou indiferente. No âmbito do governo do Estado de São Paulo, o papel mais importante cabe à agência ambiental. Autoritária, a Cetesb mostra fé na sua base técnica, mas de forma tão dogmática que aparenta atingir as fronteiras do autismo organizacional, analisam Alves e Guimarães, a ponto de posições contestadas pelos fatos não causarem qualquer estranhamento. A Cetesb procura passar a ideia de que o que aconteceu é o que deveria ter acontecido e que a confiança da organização não está sub judice. A Vigilância Sanitária, parente da agência ambiental, também fia-se no discurso científico, mas encontra coerência maior em sua estratégia de comunicação, ao manter a argumentação de uma ligação causal entre as atividades da Shell e as condições de saúde dos moradores. Na área governamental, ainda, o Ministério Público faz intervenções e mostra consciência dos seus limites, deixando claro um retrato da impotência dada pelas regras.
 
Os sindicatos conseguem atrair atenção com seu discurso contundente. Não é possível avaliar, contudo, seu real compromisso ou capacidade de mobilização, já que está ausente de boa parte dos eventos. Por fim, a associação dos moradores mostra-se inconformada, aprimora seu discurso, mas não consegue o retorno esperado. Apesar de mencionada a toda instante, não alcança o centro do palco.
 
Em situações que começam com acusações, normalmente, a estratégia típica dos atores é elaborar um discurso que vai se transformando conforme o drama se desenrola, com o objetivo de encontrar um caminho comum que preserve os laços sociais. Isso não ocorreu no caso da Vila Carioca. A conclusão da pesquisa é que, sem ruptura ou reparação, o que se construiu nessa “peça” ao longo dos anos foi uma não resposta ao problema. Até a finalização do estudo, o impacto da contaminação na população era pouco conhecido e as responsabilidades haviam sido diluídas.
 
Entre em contato com o professor Mario Aquino Alves.
 
Conheça as pesquisas realizadas pelo professor Mario Aquino Alves.